Ser garantista pode ser inconstitucional? Um pedido de reflexão aos "garantistas integrais"
- Bruno Torrano
- 19 de set. de 2022
- 5 min de leitura

Vez ou outra, debates brasileiros sobre os problemas da justiça penal parecem sugerir que aderir ao garantismo penal não é, a rigor, uma questão de escolha, e sim um dever normativo-constitucional destinado a todo e qualquer jurista: propor alguma teoria ou prática contrária ao garantismo penal seria como, ao mesmo tempo, ser refratário ao desenho institucional de direitos e garantias previsto na Constituição de 1988.
Aparentemente partindo dessa premissa, e acompanhado de outros conhecidos e respeitáveis membros do Ministério Público, o professor Douglas Fischer leva adiante a tese do garantismo penal integral, contrapondo-o ao que chama de garantismo penal monocular. Dentre outras, a distinção residiria na amplitude do objeto de proteção de cada vertente. O primeiro viés teórico estaria atento tanto a normas relacionadas com a efetividade da justiça criminal e de direitos sociais e supraindividuais quanto a normas relacionadas aos direitos individuais dos investigados e acusados. O segundo estaria ocupado, erroneamente, apenas com a radicalização dos referidos direitos individuais, excluindo ou reduzindo a quase zero o interesse pela vítima, a análise adequada da efetividade da justiça criminal e por direitos fundamentais titularizados pela coletividade.
Como sugeri em artigo publicado no JOTA, a tese do garantismo penal integral revela dois sintomas bastante graves. Por um lado, o pensamento jurídico brasileiro parece condenado a avaliar o sistema de justiça criminal à luz dos ensinamentos específicos de Luigi Ferrajoli. A guerra inócua entre garantistas “tradicionais” e garantistas “integrais” parte da premissa implícita de que o livro Direito e Razão, e as obras posteriores de Ferrajoli, constituem um trunfo inapelável destinado a julgar o erro e o acerto dos debates sobre dogmática, razão prática e política criminal. Por outro lado, assim fazendo, tais acadêmicos e membros do Ministério Público aceitam de bom grado participar do jogo argumentativo dentro do campo do adversário acadêmico, acorrentados a vocabulário inteiramente favorável ao fortalecimento daquilo que Mauro Andrade chamou de “cultura antiacusatória”.
É, com efeito, bastante difícil conciliar as premissas metodológicas e políticas de Ferrajoli com a contemporânea (e correta) preocupação com os direitos das vítimas e da sociedade no âmbito do processo penal. Ferrajoli parte da distinção positivista entre Direito e Moral para sustentar um esquema epistemológico direcionado à proteção jurídica do investigado ou acusado.
Sim: é verdade que o autor por vezes enfatiza a faceta positiva dos direitos fundamentais. Fala, por exemplo, em garantia negativa e garantia positiva. Mas isso, além de ser lugar-comum em qualquer livro de Direito Constitucional, dificilmente poderia conduzir à constatação de que Ferrajoli renegou os compromissos epistemológicos e políticos da obra Direito e Razão e, agora, propõe, como "garantia positiva", algo como que a expansão especificamente do poder penal-punitivo, ou a mudança parcial de papel do direito penal em prol das vítimas.
Primeiro, porque admitir a faceta positiva dos direitos fundamentais não conduz, necessariamente, à conclusão de que o Direito Penal constitui meio legítimo ou adequado para a tutela de direitos sociais e difusos. Trata-se, apenas, de uma descrição mais ou menos óbvia da evolução do movimento constitucionalista. Segundo, porque a descrição sobre as "garantias positivas" é bastante vaga na obra de Ferrajoli e não autoriza, por si só, a conclusão a que chegam os "garantistas integrais" acerca da compatibilidade entre o pensamento do autor com as "obrigações processuais penais positivas" por eles defendida.
"Ideias soltas", como bem notou Carbonell, permeiam a garantia de direitos sociais na obra de Ferrajoli:
"Ferrajoli, sin embargo, tanto en Derecho y razón como en sus trabajos posteriores, no va mucho más allá de estos planteamientos y apenas ofrece algunas ideas sueltas sobre la forma que debería tomar el andamiage institucional requerido por el constitucionalismo de la igualdad o sobre medidas concretas que podrían tomarse para la construcción de un garantismo de los derechos sociales." (Derechos Sociales en la teoría de Luigi Ferrajoli. p. 314)
Uma curiosidade, antes de prosseguirmos. Talvez o fato de os "garantistas integrais" não raro terem de apelar a respostas rápidas dadas por Ferrajoli a perguntas formuladas em palestras seja uma prova contundente de que o autor ainda está por esclarecer de modo sistemático e filosoficamente aprofundado se superou ou não o esquema epistemológico-político delineado em Direito e Razão. Douglas Fischer, por exemplo, para confirmar sua visão de que Ferrajoli estaria de acordo com "obrigações positivas" de "punir eficazmente" certos crimes, menciona na nota de rodapé n. 43 que, em palestra, "ao final de sua exposição", o autor respondeu "de forma muito objetiva" que seria possível "conformar" seu garantismo com a punição de agentes da ditadura militar (In: As obrigações processuais penais positivas, 2019, p. 33).
Analisado sob a perspectiva histórica, Ferrajoli poderia ser facilmente qualificado como um ultraindividualista penal. E note-se: um ultraindividualista penal ocupado com o indivíduo-réu, e não o indivíduo-vítima. Ferrajoli não disseca os impactos das teses de sua principal obra nos direitos das vítimas, na coesão social, na interpretação das normas jurídicas antinômicas (relativas a segurança pública, ordem pública etc.) e na afirmação normativa da autoridade do direito democraticamente construído. Repita-se: o esforço filosófico e teórico do autor é direcionado a justificar limitações bastante rígidas ao poder punitivo estatal. A vítima, segundo sua formulação original, é a parte mais vulnerável apenas durante o cometimento do crime. Uma vez capturado pelos órgãos oficiais do Estado, é o preso que passa a gozar da condição de vulnerabilidade – sujeito que está a diversas arbitrariedades do todo-poderoso Estado. É com base nessa premissa que Ferrajoli avança em questões sobre justificação do poder e confiabilidade do juízo.
Não surpreende que teses como “o Ministério Público não pode recorrer da absolvição do Júri fundada em quesito genérico”, “garantia da ordem pública é inconstitucional”, “nem por emenda constitucional se pode prever a execução da pena após esgotamento da segunda instância” ou “o Ministério Público não pode interpor RESp ou RE em habeas corpus concedido” encontrem confortável respaldo nas páginas ultraindividualistas da obra Direito e Razão. Todavia, com mandados expressos de criminalização e com depósito de confiança no direito penal como mais um dos instrumentos de garantia de direitos fundamentais (no todo, não apenas de investigados ou acusados), a Constituição brasileira de 1988 não compartilha do ultraindividualismo penal de Ferrajoli. Tampouco convenções e Cortes Internacionais o fazem. Sem meias palavras: ser garantista, nos termos especificamente propostos por Ferrajoli, pode ser inconstitucional e inconvencional. O compromisso primário de qualquer jurista deve ser com a Constituição da República, e não com o livro Direito e Razão.
Talvez seja a hora dos "garantistas penais integrais" refletirem se a obra de Ferrajoli é, de fato, a melhor alternativa teórica disponível para embasar as chamadas "obrigações penais positivas" e correspondentes práticas constitucionais e convencionais destinadas à efetividade da justiça criminal e dos direitos da vítima. Seria de bom grado que refletissem, igualmente, se é conveniente permanecer preso a uma guerra acadêmica infindável e improducente com os "garantistas tradicionais", em território linguístico demasiadamente confortável a todo arguente que propõe um injustificado ultraindividualismo penal.
Enfim, os adeptos do garantismo penal integral estão corretos no conteúdo, mas terrivelmente errados na referência teórica.