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Positivismo jurídico descritivo e positivismo jurídico ético-normativo: você sabe a diferença?

  • Foto do escritor: Bruno Torrano
    Bruno Torrano
  • 5 de out. de 2022
  • 4 min de leitura




Muitas críticas direcionadas por teóricos brasileiros ao positivismo jurídico erram o alvo por não se atentarem que a expressão “positivismo jurídico” é plurissignificativa. Minha pretensão, neste ensaio, é tentar fazer com que você compreenda apenas dois dos significados possíveis: a distinção entre, de um lado, positivismo descritivo (ou metodológico, ou conceitual) e, de outro, positivismo ético (ou normativo, ou ideológico).


A primeira coisa a ser dita é a seguinte: um jurista que brada “Sou positivista!” na acepção descritiva não está dizendo muita coisa. Ele não está afirmando que o direito posto é legítimo; ele não está dizendo que o direito posto deve ser obedecido pelos cidadãos; ele não está afirmando que os magistrados devem decidir deste ou daquele jeito (teoria normativa da decisão); ele não está afirmando que tal ou qual lei deve vir a ser aprovada; ele não está consignando qual é o seu ponto de vista pessoal sobre questões políticas e morais (se ele é relativista, objetivista, ou se adere a qualquer outro espectro da meta-ética ou de filosofias políticas normativas).


Em geral, o positivista descritivo que estamos imaginando firma um compromisso, apenas, com teses metodológicas e filosóficas relativas à alegada possibilidade de descrição de fatos sociais e de julgamentos morais já realizados (descritibilidade de práticas normativas[i]). Sustenta, nessa linha, o apego a valores epistêmicos (e não valores morais) que viabilizem a determinação objetiva dos fatos que, em última análise, determinam aquilo que “é” o direito. Embora haja certa divergência, entre os próprios positivistas, quanto ao alcance dessa metodologia – desde aqueles que a restringem à questão da existência ou não do direito até aqueles que a expandem às questões da normatividade e do conteúdo do direito –, a premissa compartilhada é no sentido de que saber o que o direito “é” dispensa juízos de aprovação ou desaprovação moral. A teoria do direito, nessa visão, tem caráter meramente descritivo – é, em outros termos, uma teoria modesta, com limites declarados. Avaliações morais sobre o que é socialmente desejável, sobre o que é o direito justo, sobre como idealmente deveria ser o direito, sobre como os juízes devem interpretar moralmente o direito etc., são temas para filosofia moral ou política. (Veja: não é que tais questões sejam desinteressantes ou inúteis; o positivista descritivo, traçando fronteiras claras entre metodologias diferentes e abordagens possíveis, apenas afirma que são questões a serem respondidas por outros ramos do conhecimento, e não especificamente pela teoria do direito).


Portanto, o positivismo descritivo – que, na doutrina contemporânea, abrange tanto o positivismo excludente quanto o positivismo includente –, busca organizar nossas intuições compartilhadas de casos possíveis e, em empreendimento analítico, apresenta-nos argumentos conceituais sem carga moralmente valorativa: o direito é, por natureza, planejador; o direito é, por natureza, institucionalizado; o direito, por natureza, reivindica autoridade moral; o direito, por natureza, é convencional; o direito, por natureza, é limitado; o direito, por natureza, pretende fazer diferença prática nas deliberações de seus destinatários; o direito, por natureza, é um sistema aberto; o direito, por natureza, possui diversas lacunas a serem resolvidas no momento da aplicação; o direito, por natureza, estabelece um “ponto de vista institucionalizado” que podemos descrever sem concordar; e assim por diante.


Já o positivismo ético, normativo ou ideológico, nos termos em que entendido pela doutrina contemporânea (o que exclui, aqui, aquilo que Norberto Bobbio entendia como “positivismo ideológico”), é coisa muito diversa. Trata-se de uma teoria do direito mais abrangente, expressamente comprometida, desde o início, com ideais morais e políticos considerados imprescindíveis para a preservação de um ambiente democrático. A doutrina do positivismo normativo não pretende, portanto, apenas estabelecer os critérios a partir dos quais podemos dizer que uma norma é, genuinamente, “jurídica” – ou eventual implicação lógica disso. Para eles, o posicionamento moral e político também integra aquilo que se espera de uma teoria do direito. Esta possui, além do ingrediente descritivo, igualmente um viés normativo.


Peguemos um exemplo. Quando Joseph Raz, positivista descritivo, conceitual ou metodológico, afirma que é característico do sistema jurídico pretender agir por meio de razões protegidas capazes de precluir as razões primárias de seus destinatários, ele entende tratar-se de uma afirmação conceitual sobre um critério que qualquer sistema normativo deve preencher caso queira ser considerado verdadeiramente jurídico. Ao contrário, Tom Campbell, positivista normativo, ético ou ideológico, vai muito além e, partindo desse ensinamento raziano, sustenta ser “[moralmente] bom para uma sociedade ter sistemas de regras mandatórias específicas que precluam indivíduos de realizarem julgamentos próprios sobre certas questões respeitantes a suas próprias condutas”. Acrescenta, ainda, que a tarefa justificatória da democracia relaciona-se ao reconhecimento da utilidade social e da significância moral de regras sociais compartilhadas, “em oposição à irrestrita autonomia individual ou ao poder discricionário dos oficiais (do sistema, como os magistrados)”[ii].


Essa crucial diferença, dentre muitas outras coisas, faz com que positivistas ético-normativos sejam enquadrados como ferrenhos opositores do ativismo judicial, enquanto positivistas descritivos podem não ser. Isto é: considerando que, dentro da teoria do direito, tais positivistas descritivos não firmam qualquer compromisso com teorias políticas e morais normativas, em tese é possível que defendam qualquer tipo de postura moral frente à descrição do que o direito é, inclusive posturas anarquistas (imagine, por exemplo, um positivista descritivo que, fora da teoria do direito, nega a legitimidade de todo o direito descrito dentro das fronteiras da teoria do direito).

[i] Joseph Raz não é adepto da tese da descritibilidade das práticas normativas. [ii] CAMPBELL, Tom; GOLDSWORTHY, Jeffrey (eds.). Judicial Power, Democracy and Legal Positivism. Louth: Darthmouth, 2000, p. 6.


(Artigo originalmente escrito e publicado em 2016. Revisado e modificado para este post.)

 
 

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